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O Novo Paradigma Holístico

O Que é Um Paradigma?

Um paradigma significa um modelo, algo que serve como parâmetro de referência para uma ciência, como um farol ou estrutura considerada ideal e digna de ser seguida. Ao mesmo tempo, ao ser aceito, um paradigma serve como critério de verdade e de validação e reconhecimento nos meios onde é adotado. Foi o físico Thomas S. Khun que o utilizou como um termo científico em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, publicado primeiramente em 1962, sendo no Brasil publicado pela Editora Perspectiva.

Segundo Khun, a palavra paradigma pretende sugerir que “certos exemplos da prática científica atual – tanto na teoria quanto na aplicação – estão ligados a modelos conceptuais de mundo dos quais surgem certas tradições de pesquisa”. Em outras palavras, uma visão de mundo atrelada a uma estrutura teórica metafísica aceita estabelece uma forma de compreender e interpretar intelectualmente o mundo segundo os princípios constantes do paradigma em vigor. Por exemplo, a ciência já foi dominada pelo pensamento geocêntrico (ptolomáico), que estabeleceu toda uma produção intelectual coerente com a visão de mundo deste paradigma que dizia que a terra era o centro do universo. Portanto, quem afirmasse algo como “a Terra é apenas um dentre milhões de outros planetas, e nem mesmo é o mais significativo deles” estaria fadado a ser considerado louco, ignorante ou qualquer coisa do tipo. Posteriormente, observações demonstraram que esta visão era falha e foi sendo substituída – após intensa e violenta resistência dos sábios que defendiam o antigo paradigma – pelo sistema heliocêntrico de Copérnico. Este modelo, porém, foi percebido como imperfeito pelos avanços em astronomia e foi aperfeiçoado pelas descobertas da gravitação universal da física newtoniana; esta, por sua vez, foi drasticamente remodelada, já no século XX, pela Mecânica Quântica e pela Teoria da Relatividade, não sem uma forte resistência de inúmeros doutores e acadêmicos formados na cartilha clássica de Newton e seguidores e sua sólida visão mecanicista da natureza.

Cada uma dessas fases do pensamento científica foi bem sucedidas em determinados períodos de tempo. Dando novas perspectivas para a compreensão da realidade física, condicionavam a atitude científica e estabeleciam quais seriam os critérios de pesquisa, freqüentemente ligados à maneira como se esperava que o mundo devesse funcionar de acordo com o modelo (paradigma) adotado. Deste modo, fica claro que a ciência não é um processo de descoberta, em sentido estrito, de uma realidade dada, porém parece ser mais um processo de construção intelectualmente coerente, refletindo um diálogo do pensamento humano com os fenômenos naturais e, assim, uma melhor compreensão humana, feita e comentada por homens, que lhes permitam explicar satisfatoriamente e dentro de certos critérios, alguns aspectos da realidade. Ou, em outras palavras, a ciência se constrói em cima de alguns fundamentos filosóficos bem definidos, mesmo que não sejam muito conscientes (freqüentemente não são mesmo). Assim, o modelo induz a uma visão de mundo, dentre várias outras igualmente possíveis e igualmente coerentes. A imersão em um paradigma, especialmente no paradigma dominante, prepara o cientista para se tornar membro de uma comunidade científica a que se sinta atraído. Ele é treinado a pesquisar, agir e falar dentro dos critérios do paradigma aceito. Qualquer pesquisa que pareça ir além dos limites estabelecidos é vista com desconfiança, quando não totalmente minada e descartada como “não-científica”.

Esta comunidade, adotando o mesmo modelo de ciência, induz seus afiliados a seguirem as mesmas regras básicas e padrões comuns de prática científica. De igual modo, esta mesma comunidade se inscreve dentro de uma comunidade maior que dá, em especial pelo financiamento e fundos de pesquisa, a atmosfera geral e as referências mais básicas para o florescimento de um determinado paradigma que se torna dominante, e que auxilia, na aplicação prática do conhecimento, uma determinada classe a atingir, manter ou aprimorar o poder econômico (foi assim na chamada Revolução Científica do século XVII, em grande medida pelo financiamento da burguesia capitalista ascendente, parte da qual era formada por protestantes calvinistas que buscavam no trabalho, acumulo e aplicação dos lucros na produção, por em prática uma ética ascética que foi propícia ao desenvolvimento do capitalismo, conforme demonstra o excelente estudo de Max Weber A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo).

Com a possibilidade, tal como se prometia, de se dominar a natureza, extraindo dela, como coisa objetiva e morta, os recursos necessários ao homem – em especial, os meios para acúmulo de riqueza de uma classe social que, por sua vez, patrocina a nova ciência mecanicista para que esta encontrasse novos instrumentos técnicos para uma mais aprofundada exploração da mesma natureza e mais acúmulo de riquezas -, aparentemente sem contra-indicações visíveis (ainda não se conheciam males como poluição, esgotamento de recursos naturais, desemprego, devastação ambiental, etc.), parecia que se tinha um quadro de vitoriosa demonstração da supremacia da razão humana sobre a natureza, o que levou a uma febre racionalista que incentivava e preparava os caminhos para a Revolução Industrial do século XVIII e a cristalização do capitalismo como sistema dominante das relações de produção e da visão social nas sociedades ocidentais e, posteriormente, de praticamente todo o mundo.

Por trás do progresso da ciência na chamada Revolução Científica, do século XVII, estava, desde o Renascimento, a ascensão da burguesia como classe economicamente emergente, em busca de espaço, e de um novo sistema de produção e comercialização, o capitalismo. Este processo trouxe consigo uma nova forma de relações sociais e, com esta, uma nova maneira de ver o mundo, em especial em seu financiamento e retorno da ciência. Como nos fala a professora Cristina Costa em seu livro Sociologia, Introdução à Ciência da Sociedade: A nova concepção de lucro, elaborada e praticada pelo comerciante burguês renascentista, é a marca decisiva da ruptura com os valores e as idéias do mundo medieval. O lucro não é mais apenas o valor que se paga ao comerciante pelo trabalho realizado. O lucro expressa a premissa da acumulação, da ostentação, da diferenciação individual e assim realiza a idéia de que tenho o direito de cobrar o máximo que uma pessoa pode pagar no capitalismo, o lucro tornou-se a finalidade de qualquer atividade econômica. Se um comerciante pode auferir numa troca comercial o maior preço possível que a situação permite – resultante da oferta e procura e de outras condições produtivas e de mercado, então é preciso que a produção seja organizada de forma mais racional e em larga escala. O fato de a concorrência ser cada vez maior também exige maior racionalidade [técnica] e previsão. Muitos prêmios são oferecidos aos inventores, desenvolve-se a ciência e a tecnologia, enquanto na filosofia cada vez mais se procuram as raízes da forma de pensar.

A sociedade apresentava necessidades urgentes ao desenvolvimento científico: melhorar as condições de vida; ampliar a expectativa de sobrevivência humana a fim de engrossar as fileiras de consumidores e, principalmente, de mão-de-obra disponível; mudar os hábitos sociais e formar uma mentalidade receptiva às inovações técnicas (Costa, 1998, Editora Moderna, pp. 29-31).

O Paradigma Newtoniano-Cartesiano

Nossa tão decantada civilização tecnológica está em crise, e não é preciso esforço para perceber isso. A técnica, o tecnicismo e a alta tecnologia, associadas a uma forma de viver moderna, igualmente técnica, mas cada vez mais estereotipada, pragmática e menos humana, está apontando para a falácia de mais uma promessa: por nos meios de produção ou no extremo desenvolvimento material a chave para a felicidade humana (hoje, tudo isso tem separado cada vez mais o homem do homem, o homem da natureza, e o homem de si mesmo).

Desde o século XVII, quando a racionalidade das ciências naturais – que passou a ser utilizada de forma prática pela nascente burguesia, que, além do comércio, dava seus primeiros passos rumo à industrialização – vinham obtendo crescente reconhecimento como instrumentos de compreensão da natureza e meio para se atingir a “verdade”, com sua capacidade para “desvendar” as leis naturais do mundo físico e, posteriormente, até mesmo do social, garantindo previsão e controle dos acontecimentos (ao menos, dos acontecimentos naturais em laboratório), que a aura de sacralidade, de dogma e de verdade vinha sendo transferida da religião para a Ciência, que não mais era vista como uma das formas de saber, mas a única possibilidade eficaz de se atingir “a verdade”, abolindo as crenças religiosas e/ou relativizando saberes outros, como a filosofia e a ética, já estabelecendo por conseqüência lógica que outras culturas, não ocidentais e não “científicas” eram subculturas – o que era, sem dúvida, um excelente pretexto para que a Europa “civilizada” pudesse colonizar e impor seu sistema, visão de mundo e interesses em outros povos que, em troca, seriam explorados em seus recursos naturais e humanos e se submeteria aos ditames dos “esclarecidos” europeus.

Vivemos numa época cuja principal característica está na divisão de tudo: desde a divisão de classes sociais (Hoje em dia ainda mais reforçada no chamado darwinismo social, até a divisão, algumas delas extremas, de especialidades em diversas áreas, como na Medicina, por exemplo. Esta crise reducionista foi provocada em grande parte pelo “background” filosófico extremamente mecanicista da ciência moderna, e em parte pelo modo capitalista de nossas relações, tanto humanas quanto econômicas, ambas, na verdade, formando dos aspectos de um mesmo processo intelectual. Toda promessa de felicidade técnica prometida pelo capitalismo cientificista acabou por se transformar, porém, num pesadelo: de um lado, temos a cruel falta de alimentos e do mínimo de conforto material na maioria dos países do Terceiro Mundo; e do outro lado temos a miséria psicológica e os distúrbios emocionais de toda espécie que acompanham os excessos do consumo-pelo-consumo e conforto supérfluo dos países (que são uma minoria) do Primeiro Mundo, ou 1/4 da população do planeta, onde crescem a solidão, a indiferença, os distúrbios da afetividade, a violência e a sensação de sem-sentido, conseqüência de uma visão de mundo extremamente reducionista, mecanicista e pragmática, voltada para as aparências, a competitividade e a vivência hedonista e individualista dos sentidos, nos moldes dos ideais industrialistas de nosso tempo.

O pensamento dominante nesta estrutura de coisas é o da crença fundamental de que tudo é separado de tudo, o que inclui as pessoas, as sociedades e as culturas, e que está de acordo com o modelo mecanicista e atomista que perpassa nosso paradigma científico, que busca sempre as unidades mínimas fundamentais da natureza, fazendo da análise sem fim o único modo correto de entendimento das coisas, esquecendo as características próprias de um conjunto, de um todo complexo. Assim o homem constrói mapas e teorias cada vez mais detalhados em suas minúcias e acaba por acreditar em sua obra intelectual como se fosse a descrição precisa da realidade, que é sempre mais complexa. Esta crença condiciona uma percepção da realidade que traz, ao lado de inegáveis progressos materiais, conseqüências danosas para a harmonia psíquica e social do homem, sem falar de seu impacto sobre a natureza: o apego a possessividade e seu conseqüente medo da perda, a raiva, a agressão, a competitividade e a violência ligada à defesa do “meu”, sem falar dos sentimentos afins de orgulho e ciúme.

Esta crença na fragmentação das coisas assume formas muito sutis e extremamente refinadas nas teorias ditas científicas. Até o advento da Física Moderna (Mecânica Quântica), que trouxe notável insight para a filosofia da ciência e do desenvolvimento da Psicologia Holística e Psicologia Transpessoal, bem como da antropologia e de outros campos que mostraram de forma contundente a crueldade da concepção de mundo vigente, podemos afirmar que quase toda a disciplina dita científica (até hoje) estão atreladas ao chamado paradigma newtoniano-cartesiano (Fritjof Capra, 1986), que é o modelo ainda dominante e arduamente defendido pela grande maioria dos cientistas. Chama-se paradigma newtoniano-cartesiano porque suas linhas mestras foram concebidas e, em sua maior parte, consolidadas pelos trabalhos notáveis do filósofo e matemático francês René Descartes e pelo extraordinário físico, astrônomo, místico e matemático inglês Isaac Newton.

Este paradigma se caracteriza por idealizar uma realidade, ou melhor, uma concepção/visão de mundo mecânica, determinista, material e composta, ou seja, de maquina composta por “peças” menores que se conectam de modo preciso. E essa concepção de mundo teve um grande impacto não só na Física, mas muito mais, pelas suas conseqüências filosóficas, em Biologia, Medicina, Psicologia, Economia, Filosofia e Política. A extrema fragmentação das especializações, a coisificação da natureza, a ênfase no racionalismo e na fria objetividade e o desvinculamento dos valores humanos superiores, a abordagem mercantil competitiva na exploração da natureza, a ideologia do consumismo desenfreado, as diversas explorações com fins de se obter qualquer vantagem em cima de outros seres vivos, etc. têm sua fundamentação filosófica numa pretensa visão “científica” de um universo mecanicista (atualmente, numa concepção neo-darwinista da supremacia de umas ditas classes sociais, políticas e profissionais por sobre outras, numa reedição aprimorada de um discurso fascista-racista já usado pelos nazistas há algum tempo atrás).

Com efeito, à guisa de exemplo, a fanática certeza da superioridade intelectual européia (com países sedentos pelas riquezas de outros povos e pelo potencial mercantil destes) construiu um grande número de racionalizações baseadas no linguajar científico da Física e da Biologia, maquiando a violência de fatores psicológicos mais profundos, como o da ganância materialista impiedosa, roubando e desmoralizando outros povos considerados ignorantes, primitivos e inferiores durante o máximo período de exploração colonial, entre os séculos XVIII e XX. E, de fato, a partir do modelo de alienação impositiva inglês, envernizado de civilização, possibilitaram o nascimento de teorias as mais absurdas, como a crença na superioridade genética da raça ariana, pelos nazista, que tinha – ou pretendia ter – uma forte conotação cientificista. E longe de ter tido um fim, a mesma exploração imperialista está mais ativa do que nunca, principalmente quanto aos países ditos do Terceiro Mundo, que não estão e nem se pretende que estejam inseridos ativamente no sistema internacional de consumo e produção, conhecido como globalização, e que na verdade não passa de uma alienação das forças culturais e criativas dos povos em prol de modelo nortista de capitalismo. Grande parte dos países da América Latina são considerados “sem interesse”, por serem “zeros econômicos”, e são relegados à miséria e à margem da história branca e plastificada dos que se consideram os senhores do mundo. Segundo Leonardo Boff (1997), “estes mostram, por isso, uma insensibilidade e uma desumanidade que dificilmente encontra paralelos na história”. Por mais que os arautos do racionalismo apontem desgraças e guerra em séculos anteriores e as maravilhas técnicas de nosso tempo, nunca se matou tão friamente e em nome da razão, do progresso e da civilidade como em nosso século.

Na educação mesma, como muito bem nos fala Pierre Weil (Brandão & Crema, 1991), “a fragmentação do ensino aumenta à medida que se atinge as séries superiores, chegando a fazer das universidades atuais verdadeiras torres de Babel”. Algumas teorias que se arvoram de científicas se fecham cada vez mais em si mesmas, a ponto de se criar um mundo só delas, como em monastérios acessíveis apenas aos iniciados e partilhantes de seus ideais, expressos num linguajar técnico, complexo e, quando relacionados aos interesses existenciais dos indivíduos, vazio. A função valorativa dos sentimentos foi rejeitada. Só o racionalismo linear – expresso de modo claro em gráficos e em pesos e medidas – pode ser útil. Achamos que apenas o racional pode nos dizer o que tem valor, mas isso não ocorre. Valor é algo de subjetivo que diz respeito aos sentimentos. Não é por acaso que nossa cultura, que sobrevaloriza o racional, afoga-se em dados numéricos, mas se mostra totalmente incompetente para discriminar o que realmente tem importância em meio a um mar de informações e pesquisas cartesianas, e se mostra completamente incapaz de dar o mínimo de conforto psicológico às pessoas que se sentem alienadas e excluídas pelo sistema vigente.

Nossas prateleiras universitárias estão repletas de pesquisas “esotéricas” – apenas alguns “iniciados” podem compreende-las – com pouco ou nenhum valor real para o comum dos mortais. Estas prateleiras. como disse Milan Kundera, parecem cemitérios, ou até mesmo menos que isso, pois nos cemitérios sempre ocorrem visitas, pelo menos uma vez por ano. O governo é cada vez mais incapaz de estipular prioridades com base em qualquer outra ordem que não seja o balanço comercial ou os gráficos de desenvolvimento industrial. E como a ênfase está apenas no que é racional, temos uma visão unilateral de mundo, hipertrofiada, puramente intelectual, onde sentimentos e valores são menosprezados ou são ignorados. E é interessante notar o quanto esta estrutura filosófica influencia e é, por sua vez influenciada – em feedback – pela ideologia do capitalismo, ou qualquer outra que tire vantagem da situação. Tanto esta ideologia parece encontrar justificação na visão de mundo do paradigma newtoniano-cartesiano quanto este parece encontrar todo o apoio financeiro para se manter, na medida que as pesquisas mais de acordo com seus pressupostos recebem recursos vários enquanto as pesquisas menos técnicas (segundo seus parâmetros), mais ecológicas e/ou humanistas parecem ser desmerecidas ou rejeitadas, recebendo pouca ou nenhuma atenção dos poderes econômicos. Aliás, não devemos esquecer que estes poderes buscam exatamente isso: poder. Poder sobre a natureza, sobre os lucros, sobre as pessoas. Enfim, um poder pleno e exercido de modo racional-mecânico, onde os valores humanistas não podem ter lugar.

Esta crença generalizada da onipotência técnica tem levado a atitudes e postulações extremamente arrogantes dos meios científicos e industriais, o que produz, entre outras coisas, os Titanics, os Hindemburgs, as Bombas, os Efeito-Estufa e os Chernobys da vida, bem como golpes militares, alienação, miséria, desemprego e violência. Com respeito à saúde, especialmente à Medicina, o paradigma vigente tem também exercido uma notável influência. A ênfase acadêmica e mercantilista na especialização tem feito quase desaparecer a figura do clínico geral e levado à fragmentação extrema das áreas médicas em superespecializações, quase sempre levando os pobres pacientes a se sentirem perdidos e alienados diante da frieza técnica e da ausência freqüente de uma visão global (psicossomática) do seu caso. Os mais visíveis resultados são: o “culto” à figura do médico (com toda a áurea externa e mítica a respeito dele), a quem é dada total responsabilidade pela nossa saúde, cabendo aos leigos apenas uma atitude de submissão passiva promovida pela ignorância no cuidado da própria saúde, ou seja, de uma Educação Preventiva; uma extrema frieza – que é envolta no mito da objetividade científica – para com os sentimentos e anseios do “paciente”; o “paciente” sendo considerado um “objeto” de estudo (quando não de lucro); o culto da figura do especialista, o corpo sendo tratado como uma máquina, a mercantilização da saúde e um profundo e irracional desprezo pelos aspectos psicológicos da doença.

O argumento de que, em nosso século, o desenvolvimento técnico e tecnológico de equipamentos médicos tenham sido as principais responsáveis pelo aumento da taxa de vida também é questionável. Foram as melhorias sanitárias, a conquista de direitos sociais, a educação higiênica e o entendimento dos processos de transmissão de doenças (com os trabalhos, por exemplo, de um não médico, como Louis Pasteur), a Educação Preventiva que tiveram um papel considerável na melhoria da saúde pública. A parafernália técnica está quase totalmente voltada para o diagnóstico de doenças, muitas das quais perfeitamente evitáveis com uma eficaz educação preventiva, mas que possuem a área da modernidade milagrosa.

Muito, ou pelo menos metade dos recursos utilizados em marketing e em diversos outros tipos de publicidade médica poderiam ser muito melhor aplicados na educação preventiva e na melhoria de postos de saúde, formando um conjunto de extraordinário efeito profilático. Do mesmo modo, a estreita ligação de médicos alopatas com a indústria farmacêutica (responsável pela movimentação de bilhões de dólares anuais no comércio de remédios, muitos dos quais inócuos ou até prejudiciais) têm formado um verdadeiro cartel comercial e impositivo de valores. Quando do “boom” da AIDS, em meados da década de 80, a indústria do sangue, por exemplo, não queria se submeter aos testes que poderiam indicar a presença do vírus HIV nas doações de sangue, sob o pretexto de que os gastos não compensariam os resultados. Ao que um cientista, tristemente perguntou: “Quando os médicos se deixam levar pelo comércio e comercializam a saúde, a quem a população poderá recorrer?” Esta pergunta continua sendo mais atual que nunca. Ao invés de apenas se aterem ao mecanismo de como se dá a ação de uma doença, a pergunta principal deveria ser: Por que ocorre esta doença, quais os fatores intrínsecos e extrínsecos que causaram esta doença e quais os meios em que ela pode ser eficazmente debelada. Os tão estudados mecanismos de ação patológicos nem sempre são causa, mas sim efeitos de um distúrbio mais complexo do organismo em seu intercâmbio relacional com o ambiente físico e social que o envolve, o que, quase sempre, é tristemente negligenciado pela medicina alopática, mas que, felizmente, é um dos pontos mais fundamentais da medicina homeopática, que está sendo cada vez reconhecida.

Seria útil, aqui, recordar como a história sempre se repete, como diz Marx, a primeira vez como drama e a segunda vez como farsa… Já no século II de nossa era, o notável médico Galeno acusa seus colegas de terem esquecido Hipócrates, máximo modelo do bom médico. Galeno acusava-(os de a) serem ignorantes e fechados em sua pseudo-supremacia, b) de serem corruptos em sua sede insaciável de dinheiro e c) de estarem absurdamente divididos (hoje, divididos em superespecializações). Eis o que ele disse a esse respeito: “Considerando a riqueza mais preciosa que a virtude, e exercendo a arte médica não em benefício do homem, mas por lucro e vaidade, não é possível atingir a real finalidade da medicina” (citado em História da Filosofia, vol. I, página 362, de Giovanni Reale e Dario Antiseri, ed. Paulos, São Paulo, 1990).

Todos estes quadros de tecnicismo individualistas e de descrédito em valores humanistas têm uma só causa fundamental: a nossa visão de mundo foi montada em cima de valores e referenciais mecanicistas… tomamos o relógio como metáfora do mundo, e passamos a nos tratar como máquinas… E é tal o enraizamento deste paradigma que fica até mesmo difícil de se acreditar ou aceitar que outras formas de ver e compreender o mundo tenham alguma validade intrínsenca e/ou sejam tão ou mais perfeitas que a nossa visão cientificista. Creio que ninguém melhor que o genial Max Weber, filósofo e sociólogo alemão, pôde explicitar de modo claro como o racionalismo ocidental se transformou em ideologia, que poderíamos chamar de cientificista, estabelecendo uma série de preconceitos etnocêntricos com relação a outras formas de entendimento da realidade que, se não são científicas dentro dos cânones do academicismo ocidental, nem por isso deixam de ser significativas e coerentes e, mais que tudo, de funcionarem: A Ciência como Vocação

O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas, adotam, em nossos dias, um posicionamento crítico aparentemente estranho.

Tentemos, de início, perceber claramente o que significa, na prática, essa racionalização intelectualista que devemos à ciência e à técnica científica. Significará, por acaso, que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, a respeito das respectivas condições de vida, conhecimento de nível superior ao que um hindu ou um hotentote poderiam alcançar acerca de suas próprias condições de vida? É pouco provável. Aquele, dentre nós, que entra num trem não tem noção alguma do mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha – exceto se for um físico ou engenheiro mecânico profissional. Basta-nos ‘contar’ com o trem e orientar, conseqüentemente, nosso comportamento; mas não sabemos como se constrói aquela máquina que tem condições de deslizar. O selvagem, ao contrário, conhece, de maneira incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria capaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, acaso presentes nesta sala, dariam respostas diferentes à pergunta: como explicar que, utilizando a mesma soma de dinheiro, ora se possa adquirir uma grande soma de coisas e ora uma quantidade mínima? [E isto a despeito de os economistas se orgulharem das características matemáticas de sua disciplina o que, pretensamente, a colocaria próxima das ciências exatas, objetivas]. O “selvagem”, contudo, sabe perfeitamente como agir para obter o alimento quotidiano e conhece bem os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito.

A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral progressivo e interligado acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer momento, poderíamos, bastando que o quiséssemos – e dentro de uma visão de mundo onde a razão é utilizada e calcada na produção e distribuição de mercadorias e na e feitura de máquinas -, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo, deixá-lo como uma região amorfa, sem significado, como uma massa manipulável e não tendo outra utilidade senão sua exploração econômica. Os fatos e fenômenos que escapam aos limites do previsível são ou desprezados, ou postos de lado à espera de que um aperfeiçoamento do modelo científico venha a os explicar, mas sempre dentro dos pressupostos deterministas básicos aceitos. Para nós não se trata mais, como para o selvagem que acredita na existência destes poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é a significação essencial da intelectualização. (WEBER, Ciência e política; duas vocações, pp. 30-31, Editora Cultrix, São Paulo, 1970. Os comentários entre colchetes são meus).

O Holismo: O Nascimento de Um Novo Paradigma

O extremo sentimento de mal-estar que muitas pessoas sentem diante dos complexos e trágicos problemas da atualidade tem levado a uma busca de um diálogo entre os vários núcleos do saber e da atividade humana. Por exemplo, temos a ONU e a Unesco como grandes organizações internacionais que buscam uma maneira conjunta de solucionar muitos dos atuais problemas humanos, sem falar nos movimentos de encontro interdisciplinares e a busca pela ação cooperativa em todos os âmbitos, a medicina psicossomática e homeopática e a abordagem holística em psicoterapia, etc. É a essa busca de uma visão de conjunto, uma visão do TODO – que possui características próprias independentes das características de suas partes constituintes, como o todo humano possui características próprias da de seus órgãos e tecidos -, que se dá o nome de holismo.

Desde que René Descartes cristalizou de modo definitivo a idéia da divisão da ciência em humanas e exatas (ou melhor, em Res Cogitans e Res Extensa, o que viria a se refletir em nossa divisão em corpo e mente, etc.), temos visto toda uma vasta gama de atitudes e comportamentos compatíveis com a idéia domiante do universo como um sistema mecânico casualmente emergido de um caldo de matéria de modo fortuito. No século XIX, Wundt, seguindo a tradição empirista britânica calcada na Física de Newton, atomizou a mente, reduzindo-a, ou melhor, tentando encaixá-la dentro dos parâmetros mecanicistas da ciência de sua época, haja vista o sucesso da física clássica e o grande respeito que lhe era dada. Para Wundt, como para muitos outros, a mente não passava de um epifenômeno bioquímico, como a urina é um epifenômeno dos rins. Mas tal modelo reducionista não agradou a todos, e desde então muitas escolas, como a da Gestalt, por exemplo, em psicologia e em outras áreas têm tentando – enfrentando o paradigma mecanicista olímpico vigente nos meio acadêmicos – construir uma visão mais integrativa do ser humano.

O desagrado ao modelo mecanicista – e da sua conseqüente visão de mundo – foi expresso de maneira clara por vários grandes cientistas em nosso século, como Albert Einstein, Werner Heisenberg, Niels Bohr e tantos outros. Vejamos esta passagem do físico Erwin Schrödinger, que de muitas maneiras lembra o humanismo existencialista de Soren Kierkegaard:

O quadro científico do mundo real à minha volta é muito deficiente. Ele nos dá muitas informações factuais, coloca toda a nossa experiência numa ordem magnificamente consistente, mas mantém um silêncio horrível sobre tudo aquilo que está realmente próximo de nossos corações, de tudo aquilo que é realmente valioso e caro em nossas vidas, aquilo que realmente nos interessa. Este quadro não nos pode dizer nada sobre o valor do vermelho ou do azul, do amargo e do doce, dor física e prazer físico; nada sobre o belo e o feio, o bom e o mau. É incompetente para dizer qualquer coisa válida sobre Deus e a eternidade… Assim, em suma, não pertencemos realmente a este mundo descrito pelo quadro científico. Não estamos realmente nele. Estamos fora dele. Somos como espectadores de uma peça que insiste em demonstrar que o mundo é uma máquina cega, onde aparecemos fortuitamente para, logo, desaparecer. Apenas nossos corpos parecem se enquadrar no quadro, sujeitos às leis que regem o quadro, explicados linearmente pelo quadro… Eu não pareço ser necessário como ser humano, ou como autor… As grandes mudanças que ocorrem neste mundo material, das quais eu me sinto parcialmente responsável, cuidam de si mesmas, segundo o quadro – elas são amplamente explicadas pela interação mecânica direta (…) Isso torna o mundo operacional para o entendimento pragmático. Permite que você imagine a manifestação total do universo como a de um relógio mecânico que, pelo o que sabe e crê a ciência, poderia continuar a funcionar do mesmo jeito sem que nunca tivesse havido consciência, vontade, esforço, dor, prazer e responsabilidade (Guimarães, 1996, p. 21, 22).

Este descontentamento e a intuição de que o “quadro científico” é como uma janela que deixa ver apenas uma parte ínfima da realidade tem estimulado uma notável tentativa de se construir uma visão mais holística, humana, orgânica e ecológica da realidade. Afinal, as conseqüências de uma visão de mundo mecanicista são extraordinariamente nocivas, principalmente dentro de uma certa ideologia fascista de grande parte dos poderes político-econômicos da elite do Terceiro Mundo, o que traz um alto e muitas vezes impagável preço em termos de vidas humanas e recursos naturais.

Estamos começando a antever e a construir um modelo científico que se baseia no conceito de relação, que é muito mais amplo que o de análise, como o usado pela ciência normal. Já não são somente as partes constituintes de um corpo ou de um objeto que são de fundamental importância para a compreensão da natureza desse objeto, mas o modo como se expressa todo esse objeto, e como ele se insere em seu meio. As partes que constituem um sistema tem um notável conjunto de características que se vêem no âmbito das partes, mas o sistema inteiro, o todo – o holos -, freqüentemente possui uma característica que vai bem além que a mera soma das características de suas partes. Por exemplo, sabemos que tanto o hidrogênio quanto o oxigênio são constituintes fundamentais no processo de combustão. Mas se juntamos esses elementos e formarmos a água, nós os usaremos para combater a combustão. O Todo não elimina as características das partes, mas estas, quando em relações íntimas, dão o substrato a uma nova forma, cujas características transcendem às das partes constituintes. A Ecologia é a ciências moderna que melhor pode demonstrar esta relação parte/todo em simbiose íntima.

Da mesma forma, podemos dizer que as peças de um quebra-cabeças, quando separadas, nos dizem muito pouco ou nada do que seja o quebra-cabeças. Somente quando vemos as peças em seu conjunto, e, de um certo modo, de um nível em que elas deixam de ser vistas como peças, é que podemos compreender a mensagem do quebra-cabeças. Assim também, pensamos que o mecanicismo reducionista e fragmentatador do paradigma newtoniano-cartesiano já deu o que tinha de dar. Achamos que após três séculos de ênfase na análise, está na hora de começarmos a construir um modelo que também estimule a síntese. Enquanto o mecanicismo científico vê o universo como uma imensa máquina determinística, o holismo, sem negar as características “mecânicas” que se apresentam na natureza, percebe o universo mais como uma rede de interrelações dinâmicas, orgânica.

As origens do pensamento holístico, enquanto pensamento filosófico, podem se situar ainda na antigüidade, com os pré-socráticos, especialmente com Heráclito. Posteriormente, teremos um eco desse pensamento com os estóicos e com os néo-platônicos, especialmente com Plotino, e, modernamente, com os Românticos, especialmente com Schelling e os idealistas alemães. Com a publicação do livro Holism and Evolution, em 1921, Jan Smuts pode ser considerado o teórico fundador do movimento holístico no século XX. Mas foi com a revolução extraordinária da Física das Partículas e, principalmente com a Teoria da Relatividade de Einstein, que o termo passou a ser aplicado com uma conotação mais paradigmática dentro da transformação conceitual da ciência.

Paulatinamente, primeiramente a partir da Física, foi se construindo um arcabouço intelectual que permitiu uma expansão da percepção científica para além das peças de relógio do modelo analítico cartesiano-newtoniano. Este novo arcabouço estabelece que:

A Ciência, antes estritamente objetiva, torna-se epistêmica (voltada para o próprio processo intelectual de conhecer), já que as teorias revelam mais sobre a mente que a concebe que propriamente da realidade. Toda teoria é um modelo de explicação aproximada da realidade. Além do mais, desde que Heisenberg postulou seu Princípio da Incerteza, na Física das Partículas, e de que o observador influi na experiência, a questão de uma objetividade cartesiana clássica se tornou mais uma fantasia que realidade;

Parte-se das partes simples, consideradas independentes, para partes em interação, em processo ou em rede. Não é apenas o conjunto de elementos isolados que formam o universo de fenômenos estudado pela ciência. Mas a interação, a RELAÇÃO que existe entre esses elementos. Aliás, é mais provável que os elementos sejam frutos da própria relação tanto quanto esta é fruto destes. Desta forma, a realidade é um processo de troca de informações entre todos os entes físicos, biológicos, psicológicos e sociais.

O físico norte-americano Brian Swimme fez uma síntese de alguns princípios fundamentais do holismo, ou do paradigma holístico:

  • Se a natureza do átomo (aqui o encadeamento lógico advém das características atômicas) não é dada ou é posta à compreensão exclusivamente por ele, de forma isolada, mas por sua interação e seu comportamento em relação a todo seu Universo envolvente, então a realidade física consiste principalmente de relações, como a música que se compõe de relações de sons e rítimos – e não de notas isoladas, o que implica em superposições de complexificação crescente ou na criação de sistemas dinâmicos sempre mais amplos. Ou seja, nada pode existir sem que imponha e receba características fora de seu ambiente total (Gestalt);
  • A nossa ciência e a nossa interpretação sobre o que seja o mundo são resultantes de nossa própria ação e relação com o mundo que nos cerca e com as crenças e idéias que adotamos. O ideal da neutralidade e da objetividade científica é mais ficção que realidade;
  • Além da análise que separa, a síntese que une é de fundamental importância na compreensão do mundo: conhecer algo implica em saber sua origem e finalidade. O universo parece possuir um sentido evolutivo;
  • A matéria não é algo morto, passivo ou inerte, já que é dotada de energia e parece evoluir segundo um plano criativo global; os elementos inanimados parecem se organizar segundo complexos sistemas de interação. Assim, o Universo está mais para uma rede de relações, uma realidade auto-organizante: um organismo em homeorresis.

Em Psicologia, o pensamento holístico está fortemente presente nas abordagens humanistas, especialmente na Gestalt, e, muito mais, na Psicologia Transpessoal. Stanley Krippner, diretor do Centro de Estudos da Consciência, assim definiu os quatro princípios básicos do paradigma holístico:

  • A consciência humana ordinária (relativa à percepção corporal e do ego no estado de vigília) compreende apenas uma parte ínfima da atividade total do psiquismo humano;
  • A mente ou a consciência humana, ou o espírito humano, estende-se no tempo e no espaço, existindo em uma unidade dinâmica, ou melhor, em uma relação contínua com o mundo que ela observa;
  • O potencial de criatividade e intuição é mais global do que se imagina comumente, abrangendo todos os seres vivos;
  • O processo de evolução para níveis de maior complexificação e transcendência é algo de muito valioso e importante – tendência à auto-atualização, segundo Maslow e Rogers.

O filósofo existencialista e psiquiatra alemão Karl Jaspers (1883-1969), discorrendo sobre a necessidade de se empreender reflexões sobre como se obter o melhor método em pesquisa científica, afirmava que na prática do conhecimento necessitamos de vários métodos simultaneamente, e enfatizava três grupos:

  • Apreensão dos fatos particulares que implica na observação e descrição (análise) fenomenológica;
  • Investigação das relações, onde explicar se refere ao conhecimento das conexões causais objetivas, vistas do exterior, enquanto compreender diz respeito à intuição interior:
  • Percepção das totalidades, para não se cair no gravíssimo erro de se esquecer o todo, no qual e pelo qual a parte subsiste.

Portanto, a abordagem holística não é nem analítica e nem é puramente sintética; ela se caracteriza pelo uso simultâneo desses dois métodos, que são complementares. A explicação da natureza e de todo o universo não pode ser mais puramente mecânica, pois está cada vez mais patente que existe um processo de síntese e de complexificação evolutiva que leva a criação de sistemas altamente dinâmicos, como os sistemas biológicos – logo, muito longe de serem máquinas sujeitas à segunda lei da termodinâmica clássica. Segundo Jan Smuts, o criador da moderna concepção holística, e que exerceu profunda influência em Alfred Adler, o primeiro grande discípulo discidente de Freud, “o conceito mecanicista da natureza tem o seu lugar e a sua justificação apenas na estrutura mais ampla do holismo”.

Cabe aqui uma transcrição de parte de um artigo do nosso querido teólogo e filósofo Leonardo Boff (publicado na Folha de São Paulo em maio de 1996, cuja íntegra poderá ser encontrada na Home Page do autor) sobre a nova visão holística, sistêmica ou ecológica que agora surge: Uma visão libertadora

A ecologia integral procura acostumar o ser humano com esta visão global e holística. O holismo não significa a soma das partes, mas a captação da totalidade orgânica, una e diversa em suas partes, mas sempre articuladas entre si dentro da totalidade e constituindo esta totalidade. Esta cosmovisão desperta no ser humano a consciência de sua funcionalidade dentro desta imensa totalidade. Ele é um ser que pode captar todas estas dimensões, alegrar-se com elas, louvar e agradecer aquela Inteligência que tudo ordena e aquele Amor que tudo move, sentir-se um ser ético, responsável pela parte do universo que lhe cabe habitar, a Terra. Ela, a Terra, é, segundo notáveis cientistas, um superorganismo vivo, denominado Gaia, com calibragens refinadíssimas de elementos físico-químicos e auto-organizacionais que somente um ser vivo pode ter. Nós, seres humanos, podemos ser o satã da Terra, como podemos ser seu anjo da guarda bom. Esta visão exige uma nova civilização e um novo tipo de religião, capaz de re-ligar Deus e mundo, mundo e ser humano, ser humano e a espiritualidade do cosmos. O cristianismo é levado a aprofundar a dimensão cósmica da encarnação, da inabitação do espírito da natureza e do panenteísmo, segundo o qual Deus está em tudo e tudo está em Deus. Importa fazermos as pazes e não apenas uma trégua com a Terra. Cumpre refazermos uma aliança de fraternidade/sororidade e de respeito para com ela. E sentirmo-nos imbuídos do Espírito que tudo penetra e daquele Amor que, no dizer de Dante, move o céu, todas as estrelas e também nossos corações. Não cabe opormos as várias correntes da ecologia. Mas discernirmos como se complementam e em que medida nos ajudam a sermos um ser de relações, produtores de padrões de comportamentos que tenham como conseqüência à preservação e a potenciação do patrimônio formado ao longo de 15 bilhões de anos e que chegou até nós e que devemos passá-lo adiante dentro de um espírito cinegético e afinado com a grande sinfonia universal.

A Declaração de Veneza

Em março de 1986, por iniciativa da Unesco, reuniram-se na cidade de Veneza dezenove ilustres representantes das áreas das ciências (incluindo dois Prêmios Nobel), artes, filosofia e das Tradições espirituais mais respeitáveis, todos representado dezesseis nações. Desta reunião histórica resultou um documento denominada Declaração de Veneza, que reza o seguinte:

Os participantes do colóquio ‘A Ciência face aos confins do conhecimento’, organizado pela Unesco, com a colaboração da Fundação Giorgio Cini (Veneza, 3 a 7 de março de 1986), impelidos por um espírito de abertura e de questionamento dos valores de nosso tempo, chegam a um acordo sobre os seguintes pontos:

1 – Somos todos testemunhas de uma importantíssima revolução no domínio da ciência, engendrada pela ciência fundamental (em particular a Física e a Biologia), pela perturbação que suscita na lógica, na epistemologia e também na vida cotidiana através das aplicações tecnológicas. No entanto, verificamos, ao mesmo tempo, a existência de uma defasagem importante entre a nova visão de mundo que emerge do estudo dos sistemas naturais e os valores que ainda predominam na filosofia, nas ciências humanas e na vida da sociedade moderna. Pois estes valores estão fundamentados, em grande parte, no determinismo mecanicista, no positivismo e no niilismo vazio, desumano. Sentimos esta defasagem como extremamente prejudicial e portadora de pesadas ameaças de destruição de nossa e de outras espécies.

2 – O conhecimento científico, por seu próprio movimento interno, chegou a um limite que lhe permite começar um diálogo com outras formas de conhecimento. Neste sentido, e reconhecendo as diferenças fundamentais entre a ciência formal e a Tradição espiritual, constatamos não uma intransponível oposição, mas uma complementaridade entre duas formas de se perceber o mundo. O encontro inesperado e enriquecedor entre a ciências e as diversas Tradições do mundo permite pensar no aparecimento de uma nova visão da humanidade, mas equilibrada, até mesmo de um novo racionalismo, que poderia levar a uma nova perspectiva filosófica.

3 – Recusando qualquer projeto globalizados e reducionista, qualquer forma de um sistema fechado de pensamento, reconhecemos, ao mesmo tempo, a urgência de uma pesquisa verdadeiramente transdiciplinar em intercâmbio permanente e dinâmico com as ciências ditas ‘exatas’, e as ciências ‘humanas’, a arte e a Tradição. De certa forma, esta abordagem transdiciplinar está inscrita em nosso próprio corpo, em particular em nosso cérebro através da interação dinâmica entre seus dois hemisférios. O estudo conjunto da natureza, do universo e do homem poderia aproximar-nos do real e permitir-nos enfrentar os diferentes desafios da nossa época.

4 – O ensino convencional de ciência, através de uma apresentação linear e estanque dos conhecimentos, dissimula a ruptura entre a ciência contemporânea e seu desenvolvimento histórico cheio de claros e erros, bem como das visões anteriores de mundo. Reconhecemos a urgência da pesquisa de novos métodos de educação, que levem em conta como se deu o real avanço da ciência, os quais se harmonizam com as grandes Tradições culturais da humanidade, com o resgate do sentimento na esfera das relações humanas, cuja preservação e estuda parecem fundamentais. A UNESCO seria a organização apropriada para promover tais idéias.

5 – Os desafios de nossa época – o desafio da autodestruição, o desafio da informação, da engenharia genética, etc. – esclarecem de uma nova maneira a responsabilidade social dos cientistas, na iniciativa e na aplicação da pesquisa ao mesmo tempo. Se os cientistas não podem decidir quanto à aplicação de suas próprias descobertas, não devem assistir passivamente à aplicação cega e irresponsável destas descobertas. Em nossa opinião, a amplidão dos desafios contemporâneos demanda, de um lado, a informação rigorosa, acessível e permanente da opinião pública e, de outro lado, a criação de órgãos de orientação e até de decisão de natureza pluri e transdiciplinar.

6 – Expressamos a esperança de que a UNESCO levará adiante esta iniciativa, estimulando uma reflexão dirigida para a universalidade e a transdiciplinaridade. Penso que a importância deste documento ainda há de ser reconhecida pela humanidade como a primeira tentativa institucional de âmbito mundial pela busca de uma sociedade e de uma ciência mais holística, menos fragmentária. Mas sinto que falta ao documento uma análise dos fatores econômicos que estão por trás da atual crise de valores e de sentido humanos. Com o atual quadro de distribuição de renda e de alienação econômica e educacional – tão vivenciada no Brasil -, dificilmente poderemos incrementar o ideal holístico, pois este se calca na conscientização das pessoas, que advém do uso democrático da informação (todos nós sabemos como a informação é manipulada pelos veículos de comunicação comercial e o seu peso na formação artificial da opinião pública), e esta corre o risco de ser mais um produto rigidamente controlado pela ideologia de lucro e de poder do capitalismo vigente.

O ser humano vivência a si mesmo, seus pensamentos como algo separado do resto do universo – numa espécie de ilusão de ótica de sua consciência. E essa ilusão é uma espécie de prisão que nos restringe a nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto por pessoas mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém conseguirá alcançar completamente esse objetivo, mas lutar pela sua realização já é por si só parte de nossa liberação e o alicerce de nossa segurança interior.

Compilado por Carlos Aníbal, Terapeuta do Instituto Luz

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